Lembrando
O Facebook me lembrou que eu escrevi isso aqui há quatro anos. Sobre o julgamento da criminalização da homofobia pelo STF.
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Tem muita coisa sendo sobre dita sobre o voto do Celso de Mello no julgamento conjunto (uma ADO e um mandado de injunção coletivo) sobre a criminalização da homofobia, e a sensação é a mesma de sempre de quando acontece um julgamento politicamente "importante" nas mãos do STF: no Facebook, essa ira e essa soberba típica de brasileiro se agiganta pra comentar tudo sobre qualquer coisa. Os juristas aparecem por aqui. Eu sei que, ao escrever isso aqui, vou acabar me equiparando a esse povo, mas eu posso tentar fingir ignorância.
Pois bem. Acredito que seja de comum acordo que, com a promulgação da Constituição de 1988, houve a quebra de um paradigma no Direito brasileiro, a refundação da sociedade brasileira, e tudo mais que poderia ser dito aqui e que Streck, por exemplo, passou metade da vida dele defendendo. É algo que deveria ser óbvio, mas outubro de 88 instituiu um Estado de Democrático de Direito, uma palavra que, na boca de uns e por culpa de outros, virou piada e significa o pior tipo de estadismo que se pode vir a ser concebido.
Só que um texto constitucional novo não faz milagres. Por isso, houve a instauração de uma crise paradigmática que, de forma simplista, pode ser colocada como o confronto entre uma visão anterior e privatista do Direito e, após 1988, a vinda de um texto constitucional compromissado com a mudança da realidade social e equipado, justamente, com as ferramentas jurídicas necessárias para tanto. Só recentemente é que se acostumou com essa virada hermenêutica. Sobre essa crise instaurada e que até hoje nunca foi muito bem resolvida (e que só ajuda a criar outros problemas mais complexos - vide a discussão sobre ativismo judicial), recomendo que todo mundo leia Verdade e Consenso e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, ambos do Lenio Streck.
Voltando ao voto do Celso de Mello: parece que algumas pessoas comentando o voto na ADO e no mandado de injunção ainda estão presas nessa crise paradigmática que se instalou com a falta de compreensão do texto de 1988 e o que ele, verdadeiramente, significou.
Alguns argumentos têm sido lançados, tal como a separação de poderes da República, o princípio da reserva legal e a analogia em malefício do réu, o que impossibilitaria, supostamente, a procedência das ações do Supremo.
O argumento sobre a separação dos poderes e o possível desequilíbrio entre eles, causado pela criminalização pelo Supremo, é calcado na visão classicista e anterior ao texto de 1988 da separação dos Poderes, em que haveria um engessamento de funções e o rol taxativo de atribuições servia, justamente, como uma forma proposital de omissão sobre a proteção de direitos fundamentais (a omissão equivaleria ao ato comissionado). Diante do texto constitucional de 1988, a relação entre os Poderes ainda é harmônica e estável, mas é mais fluída, porque a questão da legitimidade do poder foi transferida toda dessa separação estanque para a própria validade do poder em face da Constituição, já que o texto constitucional que valida o Poder e o controla.
(A visão de alguns teóricos de Facebook ignora que, na Alemanha, já se discute a possibilidade do controle de constitucionalidade perpassar a motivação da edição de leis que ferem a integridade e a coerência do Direito como um todo.)
Uma das formas de relativizar a separação de poderes em prol do cumprimento, ao menos, do núcleo duro da CF, tem sido a previsão expressa da ADO e dos mandados de injunção, sejam eles coletivos ou individuais.
Isso me leva a dizer que não há nada de inconstitucional, ao menos num determinado aspecto, na criminalização da homofobia. Isso porque o próprio princípio da legalidade, em torno da legislação criminal principalmente, deve ser lido harmonicamente com a própria previsão de existência da ADO e do mandado de injunção, seja ele coletivo ou individual (esse último, no caso da criminalização da homofobia, tem redação e fundamentação brilhantes).
O mesmo pode ser dito acerca do argumento sobre a vedação à analogia in malem partem. Esse argumento funcionaria num caso concreto, mas perde força (toda sua força, melhor dizendo) num caso de controle de constitucionalidade de caráter abstrato. O princípio, na verdade, acompanha a vedação à criação de Tribunais de exceção, o que não é o caso.
E o problema fulcral nem parece ser esse, sobre a criminalização ou não. O que esse julgamento conjunto testa, na verdade, é a legitimidade do Supremo Tribunal Federal e o alcance que ele possui dentro de suas atribuições. Essa é a questão. E me parece que o Supremo teria legitimidade, sim, para encabeçar essa discussão, não por causa de discussões de ordem política – como se ele fosse o porta-voz da comunidade LGBT, o que ele não seria porque, aí, sim, começaria uma confusão sem fim entre Direito e Política – mas porque a Constituição autoriza isso quando estipula, como princípio, a igualdade o dever de diminuição de desigualdades sociais.
No caso da Constituição brasileira, a Política pode, finalmente, adentrar no Direito quando ela diz, expressamente, que é dever de todos a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e a consecução desses valores passa, necessariamente, pelo controle de constitucionalidade dos atos do Poder Público que, inclusive, podem, sim, padecer de omissão.
Não digo que concordo com a criminalização da homofobia, ou que concordo com a inteireza do voto do Celso de Mello nas duas ações conjuntas, mas é o caso de dizer que o voto dele faz mais sentido do que alguns têm custado a acreditar. Naquilo que Dworkin chamou de resposta correta ou mais adequada à Constituição, o voto dele passa no teste de coerência e integridade. E isso ninguém tem se preocupado a dizer.